2010/02/26

Sem título


Este artigo é de autoria de
Pedro Vaz Serra economista


Há partes deste nosso mundo que, pensamos nó, não existem. Mas existem. E há efeitos da natureza que, por vezes, são aterradores. E mais aterradores ainda quando incindem num local onde a acção do próprio Homem ajuda à destruição, não só física, mas também moral, de todo um pouco.

E há uma zona do continente americano, habitualmente conhecida e reconhecida pela beleza das suas paisagens, pela cor do seu mar e pelos tons da sua areia - as Caraíbas - onde o resto do mundo gosta de ir passar uns bons momentos de descontração e lazer.

Nas Caraíbas existe, também, uma ilha - Hispaniola - partilhada por dois países, a República Dominicana e o Haiti que, desde 1804, é a primeira república da América Latina. Antes, o Hiti foi um colónia espanhola, depois passou para o domínio francês. E desde que assumiu a independencia, nunca mais conseguiu afirmar-se como país. Em duzentos anos, o Haiti teve mais de 30 golpes de Estado, marcados pela violência, pelo desrespeito total dos Direitos Humanos. Pela absoluta anarquia de um Estado que, simplesmente, não existe. E pela chocante falta de condições para aquilo a que podíamos classificar como o mínimo de dignidade para os seus cidadãos que, em bom rigor, nem sabem bem o que isso é. Por outro lado e em comparação com a vizinha República Dominicana, o Haiti destruiu completamente o seu ecossistema. Recordamo-no, a propósito, do que aconteceu na ilha da Páscoa, em que os habitantes esgotaram todos os recursos naturais, tendo sido obrigados a ir viverer para outro lado. Ainda hoje é um deserto. São exemplos práticos, lamentáveis e irreversíveis de ausência total de critério e de sustentablidade nas acções.

No Haiti, a terra tremeu - com especial intencidade - durante 30 segundos, no passado dia 12 de Janeiro. Serão mais de 200 mil as vítimas mortais. Serão, no mínimo, 3 milhões as pessoas directamente atingidas. Mas de 80% da população vivia com menos de 2 dólares por dia, ou seja, abaixo, muito a baixo, do limiar de sobrevivência. Hoje, em Port-au-Prince, não há água nem luz. Mas já não havia, antes do sismo, para a maioria da população. Hoje, o sistema de esgotos e condutas é inexistente. Mas já o era, para a maioria da população, antes desta catástrofe natural. Hoje, as habitações ruíram. Mas as construções que existiam espalhadas por aqueles morros não eram casas, eram um amontoado de pedras, ou tijolos, mais ou menos sustentados e emparedados sabe-se lá com quê, que permitiam que a população fosse tendo um simples tecto.

Por estes dias, os relatos, as fotos, as imágens que temos recebido são dantescas. Este território, particularmente afectado pelas condições naturais e pela auto-destruição, tem um povo moribundo, em agonia.

Estamos, seguramente, perante um daqueles casos onde toda a ajuda internacional é insuficiente. Para j´, as prioridades vão, naturalmente, para a criação de condições mínimas para aqueles que sobreviverem. E não é preciso muito. Todos os países já lá estão, ou vão a caminho. Para além de dinheiro, o Haiti precisa de orientação e de organização. Precisa de refundar a sua própria existência. O sismo que agora aconteceu veio mostrar, com uma ainda maior dureza, a realidade de 9 milhões de pessoas que habitam um território há muito esquecido. As Nações Unidas estão instaladas, há anos, no Haiti. Aliás, diga-se, as poucas infra-estruturas existentes (ou melhor, que existem...) são causa e consequência da presença da ONU. Mas é pouco, muito pouco. E, principalmente, é intangível e inacessível para a maioria da população. O Haiti não evoluiu, não cresceu, não conseguiu criar uma semente de esperança e um horizonte de vida para a sua população. Vive-se numa completa anarquia institucional.

Como quase sempre acontece - é a prova que "nós somos nós e as nossas circunstâncias", como afirmava Ortega y Gasset - os milhares de Haitianos que emigraram, ao longo das últimas décadas, para os Estados Unidos e Canadá, ocupam e desempenham, de pleno direito, posições e funções de destaque nas empresas e nas universidades, entre outros bons exemplos, sendo uma comunidade muito respeitada e com provas dadas. Uma comunidade criativa, empreendedora,criadora de emprego, tranquila, com visão. A antitése do que acontece no seu país de origem.

Não consegui dar um título a este meu texto, pois a dimensão da tragédia ultrapassa tudo aquilo que possamos escrever ou descrever e não há uma frase ou palavra suficientemente esclarecedoras para o efeito. Sei, apenas que é um imperativo de cidadania ajudar o Haiti.

Entretanto, já vi alguns sorrisos, através da televisão, nuns poucos haitinianos. Tal aconteceu - muito provavelmente, pela primeira vez em muitos anos - quando a ajuda internacional entregou um simples pacote de bolachas e um pouco de água a alguns daqueles que, vivendo mal desde sempre, vivem agora muito pior. Antes do sismo, no Haiti, a população tentava sobreviver. Hoje, no Haiti, depois do sismo, a população já não tenta nada. Apenas tenta manter-se viva, sem saber bem para quê. Que, pelo menos desta vez, o mundo possa transmitir e proporcionar aos que sobreviveram a mais esta provação um motivo válido, duradouro e consistente para continuarem a viver, apesar de tudo terem perdido. E, já agora, que o mundo não esqueça uma série de outros territórios onde, por acção do homem e não tanto por efeito da natureza, as circunstâncias da vida e as perspectivas de futuro são idênticas às do Haiti.

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